Ao toque do telefone, atende uma voz feminina do outro lado, que se identifica pelo nome da empresa na qual trabalha. Do lado de cá o sujeito pergunta sobre a possibilidade de uma informação. Diz respeito a um livro já usado que ganhara de outra possuidora, uma conhecida sua, há algum tempo e a quem já não via. No livro faltavam páginas correspondentes a um caderno e que cobriam um capítulo.
O sujeito pretendia saber se era possível efetuar-se a troca do livro. Foram então feitas perguntas protocolares sobre o título, autor, nome da coleção, número respectivo também da coleção. Passados tais dados, foi feita a pergunta sobre o ano da edição. “1971”, foi a resposta.
– Ah, responde a moça. – É muito antigo! É muito antigo.
– Sim, diz o sujeito. – É antigo, mas minha intenção é saber se neste caso seria possível para a editora efetuar uma troca.
– Hum, não sei, acho que não, pois é muito antigo.
– Perfeito, já compreendi, o livro é antigo, foi não propriamente um presente, mas me foi dado e, como diz o ditado, cavalo dado não se olham os dentes. Apenas percebi que falta um caderno. Por isto mesmo estou ligando: para saber o que é possível fazer.
– Aguarde um momento, por favor.
A moça se distancia do telefone e fala com alguém próximo. São ouvidos murmúrios, enquanto o sujeito aguarda. Seria interessante se fosse possível trocar o livro. Para os apaixonados por livros, os quais também amam a leitura – quase criminosos em tempos atuais – falar, tocar, cheirar um livro são atitudes absolutamente prazerosas, equivalentes a saborear um delicioso prato, praticamente o que ocorre pelo ato de ler. Velho, o livro traz uma história, muitas vezes passível de ser decifrada. Novo, é percurso inicial na construção de um cosmos. O mergulho na leitura cria sempre outro universo na vivência do leitor, mas ele não permanece no nível intuitivo. É possível degustá-lo “fisicamente”. Ler um livro é uma atividade do paladar.
– Alô, diz a moça.
– Sim?
– Olhe, verifiquei aqui. Pode vir trocar o livro.
– Mesmo? Que bom! Com quem posso falar?
– Qualquer pessoa! Já estão sabendo e vão atendê-lo. Pode trocar o livro.
– Muito obrigado pela atenção. Fico feliz com a gentileza, diz o sujeito, que em seguida se despede e desliga o telefone.
Cerca de uma hora depois, tempo médio de deslocamento para distancias não muito longas do paulistano, o sujeito se encontra na editora. É atendido por um jovem, o qual o faz relatar novamente todo o assunto. Ao pegar o livro, o atendente diz que não se trata de defeito, mas de falta de um caderno. O sujeito responde que já havia explicado isto e que, mesmo assim, havia sido autorizada a troca. Tendo ouvido um “vou verificar”, o sujeito ficou aguardando.
Quando retornou, o atendente, ressaltando o peso de cada palavra, afirmou que não efetuaria a troca, pois faltava o caderno que fora arrancado. O sujeito tentou argumentar que recebera o livro daquela forma e que ligara antes para se certificar. Disse ainda que entendia não ser obrigatória a troca, mas não conseguia compreender por que fazê-lo ir até a editora para receber tal resposta. E mais, por que falar ao telefone que era só levar o livro para trocar? Por que não usar outro modo condicional de atendimento, como “traga o livro para ver se é possível a troca”?
Não trocamos, foi o que ouviu o sujeito e nada podia ser feito, nem sequer falar com a pessoa que autorizara a troca por telefone. Por que permitir o deslocamento era algo que o sujeito não conseguia compreender. No mínimo, uma falta de atenção ao consumidor. Você pode comprar o livro com desconto, se quiser. Não trocamos, nem sequer atendemos pessoas diretamente na empresa. Por que fazer o sujeito ir à editora então?
Não trocamos, fale com sua amiga, pegue o livro, vire-se, estas expressões remoíam o sujeito, sentimento indefinido que lembrava uma indigestão, quando ele alcançou o passeio. Caminhando, passou por ele um andarilho, que as regras do politicamente correto mandam chamar de morador de rua, quando na verdade é um pobre diabo, único cidadão com a consciência verdadeira da crueza de viver numa sociedade socialmente injusta, construída de aparências. O sujeito não prestou muita atenção – ninguém o faz – até ouvir uma frase solta, não dirigida diretamente a ninguém:
– Eu não quero esmola! Quero apenas ser escutado.
E continuou seu caminho sem rumo, sendo observado meditativamente pelo sujeito.