Publicado originalmente na Revista Celuzlose nº 08 (acesse aqui)
Dedicatória
Aos leitores de Dante
Aos apreciadores da leitura visual da Divina Comédia por Salvador Dali
A Lover Ibaixe e Paulo Altomani, novos admiradores de Dali e da Divina Comédia
A quem pretender conhecer o Instituto Ibaixe
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Canto XI do Paraíso da Divina Comédia de Salvador Dali |
Para este trabalho, tomamos como texto principal a clássica obra A Divina Comédia de Dante Alighieri. A leitura que nos interessará analisar para apresentar uma interpretação será a do Canto XI do Paraíso, uma vez que sabemos que a obra apresenta riqueza de abordagens, tanto no seu sentido de poesia quanto no de conteúdo. Em sua totalidade, é comumente considerada como uma síntese de todo o pensamento ou cosmovisão de uma época, referente ao final do século XIII e início do XIV.
Como
instrumento de auxílio nesta leitura do trecho indicado, utilizaremos a
proposta apresentada por Erich Auerbach, em seu ensaio Figura (São Paulo: Ática, 1997), no qual ele nos remete a um modelo
interpretativo denominado de interpretação
figural. Segundo o citado autor (1997:46) a idéia central de tal modelo reside no estabelecimento de conexão entre
dois acontecimentos ou duas pessoas, em que o primeiro significa não apenas a
si mesmo, mas também ao segundo, enquanto o segundo abrange e preenche o
primeiro. A importância deste modo de leitura é que ele se compromete com o
caráter histórico dos acontecimentos, trazendo-os a uma realidade concreta e
não permitindo etéreas divagações idealistas. Ou seja, permite crítica não hegeliana da lição de Hegel para
quem todo estudo é uma análise do conceito no tempo, pois recusa categorias
hipersubjetivas de análise e coloca os autores, o Poeta no caso, sempre num
plano histórico, em que a obra aparece como uma coisa mesma para a qual se volta e da qual se retira algo vivencial
para o leitor.
O Canto
XI do Paraíso narra o encontro entre o Poeta e Santo Tomás de Aquino, que
identificado no Canto anterior, passa a relatar a biografia em modo muito
específico da vida de São Francisco, entre os versos 43 a 117, concluindo ao
final com resposta à pergunta, também anterior do Poeta: por se nutrir no bem, se for cuidadosa.
Divulga-se
largamente que a Comédia narra não
apenas a visão medieval do pósmorte, mas o percurso necessário ao homem para o
encontro com o Bem, vale dizer, o percurso do homem para a sabedoria. Este
aspecto não mais é questionado, sendo pacífico na interpretação e daqui nasce o
ponto que nos interessa no Canto XI. Se a obra relata o percurso para o Bem,
como pode ser ele realizado praticamente mesmo por aqueles que não possuem Virgílio e Beatriz por guia?
De
acordo com a lição de Auerbach, vemos na obra que todos os personagens são
apresentados a Dante de modo direto e a única oportunidade em que isto não
ocorre está sediada no Canto XI, pois São Francisco tem sua vida contada de
forma indireta por Santo Tomás. É o grande expoente da racionalidade teórica
medieval, Tomás, que apresenta Francisco, por sua vez grande expoente da
prática do amor católico daqueles tempos. Não é por outro motivo que Chesterton
escreve a biografia dos dois Santos, justificando seu trabalho exatamente por
este aspecto: Tomás representa o ápice da sabedoria cristã e Francisco, o do
amor cristão.
Para
responder à angustia de Dante, Santo Tomás relata a vida de Francisco, que nos
versos 52/54 é apresentado como nascido do raio de sol (não diga Assis... mas diga Oriente) e, depois de descrever com toda
a beleza de forma e linguagem a ruptura com seu pai, nos é relatado o casamento de Francisco, com a viúva naquele momento de mais de mil
anos, por todos desprezada e por ninguém mais até ali amada. Ela era antes a
mulher de Cristo, que com ele subiu à cruz, enquanto mesmo Maria a seu pé
permaneceu. Quem era essa mulher? E Tomás nos esclarece que se tratava da Pobreza.
Francisco
unira-se a profundo relacionamento com a Pobreza, a quem somente Cristo
desposara. Socorrendo-nos uma vez mais de Auerbach, a luta de Francisco não se
traduzia simplesmente pela recusa aos bens familiares, mas por uma luta pelo
alcance daquilo que mais desejava e amava. Era a penetrante e profunda busca da
Pobreza em nome do amor. O movimento franciscano, ocorrido em sua biografia,
foi o mesmo de Cristo em sua história: a união com a Pobreza. Neste ponto,
concluímos com Auerbach que toda história
do mundo depois de Cristo está, para Dante, contida na imagem do noivo, que vai
ao encontro de sua bem-amada. A vida de Francisco, narrada indiretamente
para destacar sua missão, apresenta-se como um modelo real, de alguém
que historicamente imitou Cristo.
Este
modelo não é simplesmente ideal ou moral, ele se concretizou no mundo,
como objeto de uma procura esforçada, como uma investigação, como uma busca
real. Há a superação de uma essência contemplativa, para o alcance prático de
uma conduta, para a realização de uma práxis
direta e imediatamente fundada na vida. É a existência que permite a imitação
do modelo; não se supera a realidade, vive-se intensamente nela e dela. É no
decorrer da vida que se concretiza a lição real de São Francisco.
Para
Auerbach, o leitor medievo tinha consciência deste modo de leitura, denominado
pelo citado autor de interpretação
figural. É o leitor moderno que precisa do suporte da pesquisa para
compreendê-lo.
Neste
momento, procuramos ir pouco além do grande ensaísta alemão e cumprir a tarefa
a que nos propusemos. Para o leitor moderno, nesta época da pós-modernidade, em
que a racionalidade é o único pressuposto de qualquer práxis, de qualquer
vínculo social ou moral, como poderia ser aproveitada a lição de Dante?
Como
vimos, embora rica em sua metafísica, a concepção de Dante exige uma prática
real, um exercício vivencial da vida de Francisco, como ele a viveu. Mas o que
seria hoje casar-se com a Pobreza? Em que canto esta mais uma vez viúva poderia
ser encontrada? Largar tudo, viver na miséria, seria a solução para uma
sociedade pós-industrial, mediada por economia de mercado, cuja produção visa
não mais a mercadoria, porém o conhecimento?
Dante
certamente jamais chegou a pensar num modelo social moderno, mas os grandes
autores têm o condão de, lembrando Ítalo Calvino, nunca terminar de dizer
aquilo que tinham a dizer e que devem ser lidos para entendermos quem somos.
Por
trás da alegoria do casamento com a Pobreza, o que há? Lembremo-nos quem foi
seu primeiro marido: Cristo, historicamente a concretização divina. Vida na
terra do princípio divino, sem qualquer especulação sobrenatural. Cristo desposa a Pobreza por amor e, desta união,
decorre também amor.
Lembremo-nos
de outro modo de se compreender o amor: a figura de Eros, que representa o amor na mitologia grega. Numa das principais
versões, retratada, por exemplo, no Banquete
de Platão, Eros nasce da união entre dois deuses, Poros e Pênia.
Poros é abundância, a plenitude de
recursos, enquanto Pênia representa a
penúria, a paupertas, a ausência de
qualquer recurso. Num banquete, Poros,
embriagado com vinho – lembrando a dionisíaca atitude de relação com a vida –
acaba por se aproximar de Pênia e
esta cria a oportunidade de ambos gerarem um filho, Eros, o amor, que para sempre fica caracterizado pela dialética
entre a abundância e a pobreza.
Numa
sociedade consumista como a nossa atual, fica fácil a analogia entre ter (abundância) e não ter (pobreza). No nosso modelo hodierno, fica também fácil
dizer que ter é ser e não ter é não ser. O que significaria
isto para Dante, uma vez que ele não vivia numa sociedade pósmoderna?
Se
Cristo era a divindade em sua dimensão histórica, ele era a representação do Todo
na concretização do tempo, enquanto a Pobreza aparecia como a figura desprezada
que nunca tivera nada e nunca fora nada. A união do Todo com o nada configura
não só um modo de expressão entre várias mitologias, como também o princípio
explicativo de formação do universo em várias regiões. A idéia de nada representa o oposto do ser, que é o
não-ser.
Mas
Cristo era o divino na terra e Francisco, mais terreno ainda, era um homem, um ser vivente humano. O que
Dante descreve é a união concreta entre um homem e o nada (não-ser), uma
realidade prática, um acontecimento concreto, efetivamente real.
O homem
é um ser, como dito, ser vivente humano. Logo, Francisco representava a
existência de um ser que se dedica e se entrega ao não-ser e sua vivência passa
como traduzida por esta relação. Francisco é ser, enquanto a Pobreza é não-ser.
Desta união amorosa nascida pela entrega amorosa, renasce o amor que ilumina
sua trilha exemplar.
Eis a
lição de Dante, figurada na suavidade do poema, indiretamente narrado pelo
maior representante da racionalidade católica, sobre a vida do maior
representante da caridade católica, lembrando Chesterton. A lição de Dante que
até hoje pode ser aproveitada não se limita a ter ou não ter, mas indica o
percurso para o amor, que se encontra na relação sempre desejada e constante do
ser e não-ser. O amor, historicamente realizado na experiência narrativa da
vida de Francisco, pode ser hoje vivenciado do mesmo modo. Um homem em si,
Francisco, Alberto ou Pedro, é um ser, um todo em si mesmo, uma totalidade. O
não-ser é sempre outro, homem, mulher ou comunidade, pois em relação ao
primeiro, não é uma totalidade; é um não-ser, pois se apresenta como um
infinito campo de possibilidades.
Dante –
não nos esqueçamos, sempre alguém preocupado com a vida política – nos
transmite a noção de que para uma verdadeira relação na polís há que haver a concreta relação dialética entre o ser (que
cada um é) e o não-ser (que a comunidade em que estamos representa). Da relação
histórica, não ideal, entre ser e não-ser que nasce a verdadeira política ou o
verdadeiro amor.
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